Se você tivesse desembarcado em Veneza em meados do século XV, poderia ter sido abordado por um monge com nariz proeminente e chapéu folgado, parecido com um smurf. Ignorando sua exaustão e odor corporal atroz após uma longa jornada no mar, ele o teria arrastado para uma taberna próxima e o interrogado sobre suas viagens. Como estava o tempo? Que tipo de gemas preciosas foram extraídas? Quais animais você encontrou e quantas cabeças eles tinham?
O monge era Fra Mauro, uma versão do século XV do Google Earth. Famoso por suas habilidades cartográficas, ele fora contratado pelo rei Alfonso de Portugal para produzir um mapa do mundo.
Os portugueses eram exploradores ansiosos e clientes ricos, e nos dias que antecederam as imagens de satélite, Veneza era o paraíso dos cartógrafos. Comerciantes árabes e exploradores do mundo todo passaram pelo porto, dando a Fra Mauro uma fonte incomparável de fofocas e grandes histórias sobre o mundo. A queda de Constantinopla, ocorrendo alguns anos antes da construção do mapa, também teria proporcionado uma rica fonte de refugiados bem viajados, presumivelmente dispostos a trocar suas histórias por pão ou cerveja.
O crowdsourcing de um mapa nunca foi tão fácil, e Fra Mauro aproveitou ao máximo. Ele interrogou esses viajantes com uma inquisição quase beligerante, cruzando suas histórias com a extensa biblioteca de seu mosteiro na lagoa de Veneza. Ele usou as informações para desenhar o próprio mapa e salpicá-lo com quase 3.000 anotações.
Fra Mauro adorava uma boa história, e seu mapa está repleto de figuras de âmbar, rubis, pérolas, diamantes, maná e “outras coisas notáveis”. Ele também era fascinado por animais e práticas exóticas. Serpentes de sete cabeças vagam pela província de Malabar, na Índia, trogloditas correm soltos no leste da África, e o mar de Barents, perto da Noruega, abriga peixes que podem “perfurar um navio com uma estaca nas suas costas”.
Tesouros mais exóticos incluem um lago em uma ilha no Oceano Índico que pode transformar ferro em ouro. Na anotação anexa, Fra Mauro explicou às pressas que não acreditava em uma palavra dessa história e a incluiu “apenas para fazer justiça ao testemunho de muitas pessoas”. Dado que ele repetiu esse conto em três lugares diferentes e desenhou um espetacular lago dourado no meio da Ilha Adaman, em boa medida, seu ceticismo parece ambíguo, para dizer o mínimo.
Para os olhos modernos, os monstros, lagos de vinho com mel e canibais, sugerem credibilidade. De fato, no entanto, as anotações no mapa estão cheias de dúvida e ceticismo. Na Índia e na África, Fra Mauro não dá crédito aos contos selvagens de “monstros humanos e animais”, observando que nenhum dos viajantes com quem ele conversou pôde confirmar as histórias. “Deixo pesquisas sobre o assunto”, concluiu sarcasticamente, “para quem está curioso sobre essas coisas”.
Fra Mauro também foi excepcional ao rejeitar a autoridade religiosa e clássica. A Europa não era um paraíso de tolerância religiosa na época; a inquisição espanhola começou apenas 20 anos após a conclusão do mapa. Os cartógrafos, consequentemente, concentraram-se em manter a igreja feliz ao invés de se preocuparem com pequenos detalhes geográficos. Os mapas medievais mostravam a localização da Arca de Noé, discutiam a depravação dos pagãos e ilustravam os gigantes hediondos Gog e Magog, espreitando no extremo norte e aguardando ansiosamente o apocalipse. Fra Mauro, por outro lado, adotou uma abordagem ricamente empírica. O Jardim do Éden foi relegado a uma caixa lateral, não mostrado em uma localização geográfica real. Ele observou com severidade que a tradição de que o Gog e Magog viviam nas montanhas do Cáucaso “é certa e claramente equivocada e não pode ser sustentada de forma alguma”, uma vez que muitas pessoas viviam e viajavam para as montanhas, e elas teriam notado qualquer coisa gigante e monstruosa que vivesse nas proximidades.
Fra Mauro também criticou várias autoridades clássicas. Como um aluno atrevido – ou um comentarista de fórum on-line – Fra Mauro precedeu suas críticas dizendo que não queria parecer teimoso, mas não podia evitar que todos estivessem errados. Ptolomeu errou o tamanho da Pérsia, classificou incorretamente o Sri Lanka e não percebeu que era possível navegar por toda a África. Quanto à circunferência da Terra, Fra Mauro citou algumas opiniões de especialistas e concluiu com desprezo que “elas não têm muita autenticidade, pois não foram testadas”. Seu ceticismo vigoroso marcou uma transição das tradições medievais para a excitação intelectual do Renascimento.
Como resultado, o mapa de Fra Mauro foi o mais preciso já feito na época. Não eram apenas seus estereótipos nacionais extremamente precisos; os noruegueses eram “fortes e robustos”, enquanto os escoceses eram “de fácil moral”. Ele foi o primeiro a descrever o Japão como uma ilha e o primeiro europeu a mostrar que era possível navegar por toda a África. A última descoberta se baseou em relatos de comerciantes infelizes e exaustos por uma tempestade na África do Sul, aprendendo que ela era circunavegável e generosamente dotada de pássaros de quase 20 metros, capazes de apanhar elefantes. Ao descrever as riquezas, as rotas de navegação e as pessoas ao redor do mundo, Fra Mauro não apenas descreveu o terreno, mas contribuiu para incentivar novas explorações e análises, que antecederam a famosa Era das Explorações e a descoberta da América.
O interesse moderno no mapa de Fra Mauro foi despertado por Placido Zurla, um monge do mesmo mosteiro, que publicou um longo estudo em 1806. Desde então, é amplamente reconhecido que Fra Mauro estava muito à frente de seu tempo por seu conhecimento geográfico preciso, disposição de desafiar as autoridades e enfatizar a observação empírica.
O mapa é preciso o suficiente para guiar os pesquisadores a sítios arqueológicos ainda não descobertos. Por exemplo, os contatos de Fra Mauro na Igreja da Etiópia lhe permitiram mapear a Etiópia medieval com detalhes surpreendentes. Ele retratou com precisão uma série de características geográficas; o rio Awash, as montanhas ao redor de Adis Abeba e a montanha e o mosteiro de Ziquala (que ainda existe, 500 anos depois). Juntamente com as características geográficas, Fra Mauro traçou cidades antigas que diante séculos os estudiosos supuseram nunca existirem. Hoje, essa suposição é contestada pelos arqueólogos, que encontraram indícios inconfundíveis de habitações passadas nos locais que Fra Mauro indicou. Embora nenhuma escavação tenha começado, fragmentos de obsidiana e peças de cerâmica estão espalhadas pela paisagem, e pequenas paredes, pedras de moer antigas e fundações desgastadas são visíveis sob musgos e arbustos.
Se ele estivesse vivo hoje, Fra Mauro provavelmente ficaria desapontado ao saber que lagos de ouro e vinho existiam apenas na imaginação dos viajantes que ele entrevistou. Ele ficaria feliz em saber que seu mapa está se mostrando mais preciso do que céticos cartógrafos lhe deram crédito e que ainda atua como ponto de partida para novas pesquisas e descobertas.
Publicado na página Curiosidades Cartográficas do Facebook em: https://www.facebook.com/curiosidadescartograficas/posts/1304335523093312
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